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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Após o polêmico tema da reencarnação, o segundo tema sugerido pelos leitores de Enfoque para abordagem na revista é a predestinação, uma doutrina cristã controvertida e de difícil compreensão e que, por seus pontos de vista conflitantes, no entendimento do pastor presbiteriano Éber Lenz César, “tem dividido as igrejas”. A proposta aqui é esclarecer e ampliar o debate, evitando qualquer animosidade entre as correntes antagônicas – a dos calvinistas e a dos arminianos – lembrando que a exposição do ponto de vista de uma não deve melindrar os defensores da outra. Portanto, muita calma!

Predestinação fala do destino humano pré-determinado por Deus. Ou determinado de antemão, na linguagem usada pelo apóstolo Paulo em Romanos 8.29. Em termos clássicos, predestinação é definido como “o aspecto da pré-ordenação de Deus através do qual a salvação do crente é efetuada de acordo com a Sua vontade, que o chamou e o elegeu em Cristo para a vida eterna, sendo a sua aceitação voluntária da Pessoa e do sacrifício de Cristo uma conseqüência desta eleição e do trabalho do Espírito Santo, que efetiva esta eleição, tocando no coração do predestinado e abrindo-lhe os olhos para as coisas espirituais”.

A tensão por trás dessa doutrina, elaborada no século 16 pelo reformador João Calvino, é esta: por que as pessoas não recebem a mesma possibilidade de aceitar ou rejeitar a verdade do Evangelho? Por que as possibilidades histórica ou psicológica de receber a salvação não são as mesmas, e por que muitas pessoas não conseguem sequer entender o significado da pregação e por isso perecem eternamente?

De acordo com o teólogo reformado e historiador da Igreja Paul Tillich, a resposta a essa pergunta é a providência divina, e ele diz: “Providência a respeito de nosso destino eterno chama-se predestinação”. Na definição do próprio Calvino, “predestinação é o eterno decreto de Deus que determina o que vai acontecer com cada ser humano individual, pois nem todos são criados para o mesmo destino. A vida eterna é predeterminada para alguns e a perdição eterna para outros”.

Para o pastor presbiteriano e doutor em Teologia Luis Longuini Neto, Calvino se baseou na Bíblia toda, e não em pedaços dela para formular sua doutrina. “Tanto no Antigo Testamento como no Novo, a predestinação é encontrada como expressão da soberania de Deus”, ele diz.

Em sua obra clássica História do Pensamento Cristão, Tillich escreveu que “A vontade irracional de Deus é a causa da predestinação. E assim somos introduzidos ao mistério absoluto. Não podemos pedir que Deus nos preste contas”, ele enfatiza. E complementa: “O desejo de certeza da salvação foi uma razão forte para que surgisse a doutrina da predestinação, tanto em Paulo como em Agostinho, Lutero e Calvino. Eles não podiam encontrar certeza ao se sondarem a si mesmos, porque a fé é sempre fraca e mutável. Só encontraram esta certeza fora deles, na ação soberana de Deus.”

GRAÇA IRRESISTÍVEL

O pastor Longuini esclarece que o teólogo alemão reformado Karl Barth foi o primeiro na modernidade a reinterpretar Calvino, mas que, do ponto de vista teológico, a base doutrinária da predestinação é mesmo de Santo Agostinho, bispo de Hipona, na África, ainda na idade antiga (século 5): “Não podemos esquecer que Lutero e Calvino, os pais do protestantismo e ambos defensores da predestinação, eram agostinianos”.

Para o pensador Agostinho, canonizado como santo pela igreja católica, “os predestinados não podem cair. Recebem o dom da perseverança que lhes impede de perder a graça uma vez recebida”. Mas para o célebre teólogo negro, “nada disso depende de mérito do crente, uma vez que a graça será sempre irresistível desde que seja dada”.

Longuini afirma que a doutrina da predestinação terá sempre um grande peso no ministério dos presbiterianos (herdeiros do calvinismo): “Entender que o meu ministério não pertence a mim, que as ovelhas são de Cristo, é crer que tudo depende da graça de Deus e não dos nossos parcos e ínfimos esforços”. Ele revela que, segundo Calvino, os predestinados são reconhecidos pelos frutos: “Todos dão frutos de justiça e vivem para a glória de Deus”. Mas faz uma ressalva: “Certo ministério que se autoproclama apostólico tem usado a predestinação visando a glória pessoal e não a de Deus, cometendo heresias em nome desta doutrina. Minha crítica principal é que eles entendem a predestinação como um nazismo eclesiástico, pelo qual pretendem construir uma raça pura de cristãos. Isso é desculpa para a prática de um cristianismo sem compromisso, sem ética social e sem valores do reino de Deus, o que fere frontalmente a idéia calvinista”, Longuini conclui.

LIVRE-ARBÍTRIO

De acordo com o pastor metodista e escritor Wilson de Souza, que sustenta aqui a versão arminiana, também defendida pelos teólogos da Assembléia de Deus, a predestinação não exclui ninguém da obra de salvação em Cristo. “O Evangelho afirma que Deus amou o mundo, logo Ele quer que todos sejam salvos. Ele predestinou todos para serem salvos. Toda a humanidade está predestinada para a salvação”, garante o autor de Além da Morte até a Eternidade, publicado pela MK Editora. Mas, segundo Souza, tudo depende de como a pessoa predestinada recebe ou não a Palavra e o convite para ser salva: “Ser um vaso de honra ou de desonra depende da pessoa” – ele diz –, “uma vez que tudo passa pelo livre-arbítrio, o qual faz parte da imagem de Deus no homem”.

Discordando de Agostinho e dos calvinistas, que consideram a graça de Deus irresistível, ou seja, mais poderosa que qualquer resistência humana a ela, o pastor metodista afirma: “Se a graça de Deus fosse ‘irresistível’, Deus salvaria toda a humanidade, mas Ele não nos força. Ao contrário, nos valoriza e nos deixa livres para decidir nosso destino. Deus não nos vê como marionetes, mas como seres racionais responsáveis, com capacidade para aceitarmos ou não sua oferta de amor em Jesus Cristo”. Para os metodistas, segundo o pastor-escritor, a predestinação é, portanto, fruto e conseqüência da resposta de cada um ao chamado de Deus: “Ora, se houvesse predestinados ao céu e ao inferno, que Deus terrível seria este. Eu não consigo imaginar um Deus amoroso que crie pessoas para mandá-las para o inferno. Isso contradiz o caráter de Deus”, defende Souza.

Na sua concepção, a base bíblica para a predestinação é que Deus, embora ame o mundo e deseje que todos se salvem, já sabe, por sua onisciência, quem vai responder positivamente ao convite e quem não vai, teoria esta elaborada no princípio do século 17 pelo teólogo holandês Tiago Armínio, fundador da corrente arminiana.

Wilson de Souza afirma: “Se já houvesse pessoas marcadinhas para a salvação, não haveria a necessidade de se pregar o Evangelho a toda criatura. Os salvos apareceriam automaticamente e o ‘Ide’ de Jesus não faria o menor sentido. A Igreja prega para que as pessoas possam responder positivamente e serem salvas. Isso implica numa escolha. Deus fez o homem com poder de decidir, está lá em Deuteronômio 30.19. Ele colocou diante de nós a vida e a morte e nos mandou escolher”.

O pastor metodista recorre ao Novo Testamento para mostrar que Deus sempre deseja que escolhamos a vida. “Está lá em 1 Tm 2.4: ‘O qual deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade’. E em 2 Pe 3.9: ‘Não querendo que nenhum pereça, mas que todos cheguem ao arrependimento’. Acontece que Jesus preveniu que a porta é estreita e que são poucos os que acertam com ela, ou seja, o caminho da perdição é espaçoso e acaba tragando a muitos predestinados”. Ele conclui afirmando que Jesus morreu por todos, sem exceção, “mas para se manter no caminho estreito, é preciso muita perseverança, vontade e esforço”. Souza acredita que quem consegue atravessar esta porta e chegar ao outro lado recebe, então, o selo de “predestinado”.

SOBERANIA

Para o mestre em Teologia Solano Portela, da Igreja Presbiteriana de Santo Amaro, dentre as doutrinas contidas na Bíblia, a predestinação é uma das mais difíceis: “Deus realmente determina as ações do homem? Cremos que sim. Na execução do seu plano soberano, ele determina tudo o que acontece, mas muitos têm dificuldade em aceitar este fato. Na realidade, temos apenas duas posições possíveis: ou Deus determina as ações do homem, ou Ele não determina e o homem é completamente autônomo”.

Portela acredita que evocar a onisciência de Deus não resolve o problema da predestinação, como acreditam os arminianos: “Alguns tentam contornar este problema dizendo que Deus não determina, de fato, mas como Ele conhece tudo de antemão, ‘determinaria’ ou ‘predestinaria’ as coisas que Ele sabe que irão acontecer. Ou seja, a sua determinação é dependente do Seu conhecimento prévio, de Sua onisciência. Com isso, procura-se deixar as pessoas ‘livres’. Mas será que é assim mesmo e que esta posição resolve o problema? Creio que não! Querer resolver o problema da liberdade humana ancorando a soberania de Deus e a sua predestinação na onisciência dEle traz uma solução apenas aparente, mas não real. A Confissão de Fé de Westminster, em seu Cap. III, seção 2, afirma que Deus ‘... não decreta coisa alguma por havê-la previsto como futura’. Se Ele determinasse, simplesmente porque conhece de antemão, na hora em que houvesse determinado, estas situações se tornariam fixas e imutáveis”.

Na mesma linha, o comentarista bíblico norte-americano John Piper sustenta: “Seria antibíblico atribuir a Satanás ou aos homens o poder de frustrar os planos de Deus”. E vai mais além: “Deus tem o direito, o poder e a sabedoria para fazer tudo o que deseja, tudo o que o faz feliz. Nenhum dos seus propósitos pode ser frustrado”.

Portela, por sua vez, considera impossível a defesa do livre-arbítrio pelos teólogos que vêem a onisciência de Deus como causa da predestinação: “E se os homens, de acordo com este conceito de ‘cumpridores das determinações de Deus apenas porque Ele já conhecia’, resolverem na última hora ‘mudar de idéia’? Como fica o plano de Deus? Deus também ficará mudando, à mercê das determinações do homem, e até quando?”, ele indaga.

De acordo com o teólogo paulista, “procurar escapar da imensa evidência bíblica que ensina a irrestrita soberania de Deus, o seu plano sábio e sua onipotência no cumprir tudo o que antes predeterminou, com o sofisma de que Deus realmente não determina, mas apenas conhece previamente, não traz qualquer pretensa liberdade ao homem, a não ser que se pretenda reduzir o poder de Deus”.

Predestinação, para Solano Portela, é simplesmente “um ponto específico” do plano soberano de Deus para todas as coisas: “O nosso Deus é soberano e não existe uma área sequer do universo e da nossa existência que não esteja sob esta soberania e regência, inclusive a questão da salvação de almas”, assegura.

Entre inúmeros versículos do Antigo e do Novo Testamento de que se utiliza em defesa da ampla e irrestrita soberania de Deus no destino de cada pessoa, o teólogo calvinista cita uma fala de Jesus nos evangelhos: “Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora”.

Joel Macedo

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