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quarta-feira, 21 de março de 2012
Escrevi a meditação “A Promessa do Pai e a Garantia do Filho” e alguns irmãos de orientação arminiana objetaram que se o termo perder (apollumi) em Jo 6:39 significa perda da salvação, então o mesmo termo utilizado por Paulo em 1Co 8:11 e Rm 14:15 implicaria que um crente pode perder a sua. O dilema é que numa passagem se afirma que o crente não perde a salvação e na outra que um crente a perderá. Alguns tem argumentado que os que foram “dados pelo Pai” não se refere aos eleitos. Porém isto é indiferente para a dificuldade. Se as duas passagens se referem a crentes verdadeiros (e eu creio que sim), e numa é afirmado que eles não perecerão e noutra que eles podem perecer, seja para um calvinista ou para um arminiano, há uma aparente contradição aqui.
O significado etimológico de apollumi
A premissa dos não calvinistas é que apollumi sempre significa “perecer”, com o sentido teológico de “perder a salvação”. Mas quando consideramos as ocorrências do termo no Novo Testamento, encontramos uma variedade de sentidos, indo de morte física (Mt 2:13; 8:25; Lc 11:51; 1Co 10:9) a um uso meramente figurado (Lc 15:17; Tg 1:11). João emprega o termo em seu evangelho referindo-se à perda da vida eterna, e mais precisamente para afirmar que um crente não a perde (Jo 3:16; 10:10, 28; 12:25; 17:12; 18:9). Em Paulo o termo é usado para significar a morte física, sem implicar perda da salvação (1Co 10:9-10; 2Co 4:9), embora também o use com o sentido de perdição eterna, tendo como referência descrentes (Rm 2:12, 1Co 1:18, 2Co 2:15, 4:3 e 2Ts 2:10). Conclui-se que apollumi não serve apenas para indicar perda da salvação, e isso deve ser levado em conta quando se lê 1Co 8:11 e Rm 14:15.
Vários especialistas atestam isto. Zodhiates (The Complete Word Study Dictionary) diz que o termo pode indicar morte física, além da perda de posse de coisas como comida, cabelo e ovelhas e de pessoas, como um filho. Kittel (TDNT), além dos termos destruir e perecer, lista como significados possíveis “perder a posse e andar perdido, como vaguear errante”. Barton (1 & 2 Corinthian) sugere que apollumi pode significar “a ruína da consciência de alguém”. Thiselton (The First Epistle to the Corinthians: A Commentary on the Greek Text), indica o significado de “arruinado, num sentido oposto ao de edificado”. Girdlestone (Synonyms of the Old Testament: Their Bearing on Christian Doctrine), afirma que a palavra pode denotar “desperdício” ou “lesão que torna o objeto inútil para a finalidade desejada” e cita como exemplo a terra, que foi “destruída” pelo Dilúvio e como tal ficou imprópria para morada do homem. Spence-Jones (The Pulpit Commentary) confere o sentido de “edificação-ruinosa” ao termo. O significado, em cada caso, deve ser determinado pelo contexto.
O contexto de imediato de 1Co 8:11 e Rm 14:15
O assunto do capítulo 8 é o comer carne sacrificada aos ídolos e como o conhecimento, a consciência e o amor fraternal se relacionam com a prática. O apóstolo declara que “o conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica” (v.1). Como “sabemos que o ídolo não significa nada no mundo e que só existe um Deus” (v.4), não somos afetados pelo que comemos, pois “não seremos piores se não comermos, nem melhores se comermos” (v.8). Porém, na comunidade da fé, “nem todos têm esse conhecimento” e “comem esse alimento como se fosse um sacrifício idólatra; e como a consciência deles é fraca, esta fica contaminada” (v.7). Daí o alerta “tenham cuidado para que o exercício da liberdade de vocês não se torne uma pedra de tropeço para os fracos” (v.9) uma vez que “se alguém que tem a consciência fraca vir você que tem este conhecimento comer num templo de ídolos, não será induzido a comer do que foi sacrificado a ídolos?” (v.10). E faltando-lhe o conhecimento de que o ídolo nada é, “esse irmão fraco, por quem Cristo morreu, é destruído por causa do conhecimento que você tem” (v.11) e “você peca contra seus irmãos dessa maneira, ferindo a consciência fraca deles, peca contra Cristo” (v.12). O princípio estabelecido pelo apóstolo é “se aquilo que eu como leva o meu irmão a pecar, nunca mais comerei carne” (v.13). Noutras palavras: a regra que regula o conhecimento é o amor devido ao irmão de consciência fraca.
A passagem encontra um paralelo em Rm 14. Ali, o crente fraco é chamado de “fraco na fé” (v.1) e “come apenas alimentos vegetais” (v.2). Paulo deixa claro que não importa o que alguém come ou deixa de comer, “pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (v.17). Mas no que faz “cada um deve estar plenamente convicto em sua própria mente” (v.5), pois “aquele que tem dúvida é condenado se comer, porque não come com fé; e tudo o que não provém da fé é pecado” (v.23). Vemos o mesmo princípio estabelecido: “façamos o propósito de não colocar pedra de tropeço ou obstáculo no caminho do irmão” (v.13), pois “se o seu irmão se entristece devido ao que você come, você já não está agindo por amor. Por causa da sua comida, não destrua seu irmão, por quem Cristo morreu” (v.15). Paulo acrescenta: “não destrua a obra de Deus por causa da comida. Todo alimento é puro, mas é errado comer qualquer coisa que faça os outros tropeçarem” (v.20). O contexto imediato não requer a perda da salvação como significado obrigatório de perecer.
O contexto mediato de 1Co 8:11 e Rm 14:15
A perdição eterna do irmão fraco causada indiretamente pelo irmão com conhecimento, conflitaria com o ensino de Paulo sobre a certeza da salvação expressa nas duas cartas (Romanos e 1Coríntios). Paulo declara “agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8:1) pois a cadeia “aos que predestinou, também chamou; aos que chamou, também justificou; aos que justificou, também glorificou” (Rm 8:30) não admite ruptura, pelo que Paulo estava “convencido de que nem morte nem vida, nem anjos nem demônios, nem o presente nem o futuro, nem quaisquer poderes, nem altura nem profundidade, nem qualquer outra coisa na criação será capaz de nos separar do amor de Deus que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8:38-39). Ele cria que “os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis” (Rm 11:29).
E aos crente de Corinto assegura que “Ele os manterá firmes até o fim, de modo que vocês serão irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é Deus, o qual os chamou à comunhão com seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1:8-9). Mesmo que as obras não sejam perfeitas, a salvação é garantida, pois “se o que alguém construiu se queimar, esse sofrerá prejuízo; contudo, será salvo como alguém que escapa através do fogo” (1Co 3:15). Assim, afirmar que o fraco na fé perecerá finalmente contraria o que ele afirma categoricamente em outras passagens dessas duas cartas.
O sentido de “perecer”
Então, qual o significado de perecer nessas duas passagens? À luz do que foi dito acima, creio que podemos arriscar um significado para o termo apollumi usado por Paulo em Rm 14:15 e 1Co 8:11. Não devemos tomá-lo com o sentido de perda da salvação eterna, pelo seguinte. Em Rm 14:4 a salvação do crente fraco é garantida: “quem é você para julgar o servo alheio? É para o seu senhor que ele está de pé ou cai. E ficará de pé, pois o Senhor é capaz de o sustentar”. É uma afirmação positiva da preservação do crente. A destruição referida no verso 15 é previamente descrita como tristeza: “o seu irmão se entristece devido ao que você come... não destrua o seu irmão”. Destruir tem o seu oposto em edificar, mencionada no verso 19: “esforcemo-nos em promover tudo quanto conduz à paz e à edificação mútua”.
O mesmo contraste é observado em 1Co 8:10-11, embora não seja tão evidente. Já vimos que um possível significado para apollumi é arruinar, no sentido oposto de edificar. No verso anterior, induzir é oikodomeo e ocorre diversas vezes com o significado dado por Strong de “construir uma casa, erigir uma construção, edificar” e metaforicamente “promover crescimento em sabedoria cristã, afeição, graça, virtude, santidade, bem-aventurança” (Cf. Rm 15:20; 1Co 8:1; 10:23; 14:4,17; Gl 2:18; 1Ts 5:11). Note que a edificação é o resultado do amor que regula o conhecimento: “o conhecimento traz orgulho, mas o amor edifica” (1Co 8:1). Portanto, ao prescrever o amor acima do conhecimento o apóstolo espera ter como resultado a edificação, e quando falta o amor, o conhecimento arruína o irmão fraco e o objetivo é frustrado.
A interpretação de Rm 14:15 e 1Co 8:11 como não significando a destruição escatológica, mas a ruína do crescimento espiritual do irmão fraco na fé é apoiada por diversos estudiosos. Radmache (The Nelson study Bible) diz que “se o irmão e a irmã fracos veem outros crentes comendo alimentos sacrificados aos ídolos, eles também podem comer, violando suas próprias consciências”. O já citado Thiselton diz que a tradução “perecem” é inadequada porque muda a imagem apresentada no verso anterior (edificar) e que a melhor tradução é “arruinar”. Pfeiffe (The Wycliffe Bible Commentary) diz que perecer “não significa morte eterna”, mas “violação da própria consciência”. Vine (Collected Writings of W.E. Vine) afirma que o verbo apollumi, “às vezes traduzido destruir, denota perda do bem estar, aqui o bem estar de fazer aquilo que a consciência testifica. A idéia de ruína implicada em perecer é colocada em contraste com a verdadeira edificação... Cristo morreu não apenas para salvá-lo da perdição, mas de tudo o que pode roubar sua comunhão e todos os eventos que temporariamente podem prejudicar sua vida espiritual”. Pentecost (Designed to be like Him) declara que “a palavra perecer não significa que o irmão fraco perde a sua salvação... [mas que] contamina sua consciência e então não pode haver desenvolvimento, progresso e edificação na doutrina da graça”. Davidson (Novo Comentário da Bíblia) interpreta perecer como a situação em que “sua vida e seu testemunho cristãos se arruinariam”. Mayer (Comentário Bíblico do Antigo e Novo Testamento) diz que por “perecer” o irmão foi “prejudicado em sua vida cristã”.
O que Jesus tem a dizer
A controvérsia começou com as palavras de Jesus de que os que lhe foram dados pelo Pai não se perderiam. Então daremos a Ele a última palavra. Considere que o objeto da destruição em Rm 14:15 e 1Co 8:11 é o irmão fraco, por quem Cristo morreu. Isso o coloca na categoria dos pequeninos de Jesus, sobre quem o Senhor falou “o Pai de vocês, que está nos céus, não quer que nenhum destes pequeninos se perca" (Mt 18:14). Se assumirmos que ele finalmente perderá a sua salvação, temos que admitir que a vontade do Pai e a morte de Cristo não lhe foram de serventia para protegê-lo. Que o Senhor nos livre de tal disparate.
Soli Deo Gloria
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