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quarta-feira, 21 de maio de 2014
Por outro lado, é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus, e da visão dele desça a examinar-se a si próprio. Ora, sendo-nos o orgulho a todos ingênito, sempre a nós mesmos nos parecemos justos, e íntegros, e sábios, e santos, a menos que, em virtude de provas evidentes, sejamos convencidos de nossa injustiça, indignidade, insipiência e depravação. Não somos, porém, assim convencidos, se atentamos apenas para nós mesmos e não também para o Senhor, que é o único parâmetro pelo qual se deve aferir este juízo. Pois, uma vez que somos todos por natureza propensos à hipocrisia, por isso qualquer vã aparência de justiça nos satisfaz amplamente em lugar da real justiça. E porque dentro de nós ou a nosso derredor nada se vê que não seja contaminado de crassa impureza, por todo tempo que confinamos nossa mente aos limites da depravação humana, aquilo que é um pouco menos torpe a nós nos sorri como coisa da mais refinada pureza. Exatamente como se dá com um olho diante do qual nada se põe de outras cores senão o preto: julga-se alvíssimo o que, entretanto, é de brancura um tanto esfumada, ou até mesmo tisnado de certa tonalidade fosca.
Ademais, dos próprios sentidos do corpo nos é possível discernir ainda mais de perto quanto nos enganamos ao avaliarmos os poderes da alma. Ora, se em pleno dia ou baixamos a vista ao solo,ou fitamos as coisas que em torno de nós se patenteiam ao olhar, parecemo-nos dotados de mui poderosa e penetrante acuidade. Quando, porém, alçamos os olhos para o sol e o miramos diretamente, esse poder de visão que sobre a terra se fazia ingente prontamente se suprime e confunde com fulgor tão intenso, de sorte a sermos forçados a confessar que essa nossa habilidade em contemplar as coisas terrenas, quando para o sol se voltou, é mera ofuscação.
Assim também se dá ao estimarmos nossos recursos espirituais. Pois, por tanto tempo quanto não lançamos a vista além da terra, mui fantasiosamente nos lisonjeamos a nós mesmos, de todo satisfeitos com nossa própria justiça, sabedoria e virtude, e nos imaginamos pouco menos que semideuses. Mas, se pelo menos uma vez começamos a elevar o pensamento para Deus e a ponderar quem é ele, e quão completa a perfeição de sua justiça, sabedoria e poder, a cujo parâmetro nos importa conformar-nos, aquilo que antes em nós sorria sob a aparência ilusória de justiça, logo como plena iniqüidade se enxovalhará; aquilo que mirificamente se impunha sob o título de sabedoria exalará como extremada estultícia; aquilo que se mascarava de poder se argüirá ser a mais deplorável fraqueza.
Portanto, longe está de conformar-se à divina pureza o que em nós se afigura como que absolutamente perfeito.
João Calvino
In: Institutas da Religião Cristã
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