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segunda-feira, 9 de janeiro de 2012
Ou cuidais vós que em vão diz a Escritura: O Espírito que em nós habita tem ciúmes? Tg 4:5 (ACF2007)
Esta é uma passagem que apresenta considerável dificuldades de compreensão, se examinada mais atentamente e à luz de seu contexto. A questão que se levanta é se espírito se refere ao Espírito Santo, ao espírito humano ou a um espírito maligno. O que dá espaço à polêmica é a conotação negativa do termo ciúme, agravada pelo fato da passagem citada por Tiago não ser encontrada no Antigo Testamento na forma em que é expressa.
A dificuldade é evidenciada pela variedade de formas com que “προς φθονον επιποθει το πνευμα ο κατωκησεν εν ημιν” (literalmente “com ciúme anseia o espírito que fez habitar em nós”), é traduzido. A Almeida Revista Corrigida diz “o Espírito que em nós habita tem ciúmes”, a Tradução Brasileira “com zelos anela por nós o Espírito que ele fez habitar em nós”, a Almeida Revista traduz “o Espírito que ele fez habitar em nós anseia por nós até o ciúme”, a Almeida Revista e Atualizada “é com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós” e a NVI traz “o Espírito que ele fez habitar em nós tem fortes ciúmes”. A Bíblia de Jerusalém apresenta “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?” e a Almeida Revista e Corrigida Anotada traz a seguinte alternativa: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.
Traduções em linguagens mais modernas também apresentam várias possibilidades. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje diz “o espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”, a Bíblia Viva traduz “o Espírito Santo, que Deus pôs em nós, vigia sobre nós com terno ciúme” e a Versão Fácil de Ler “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Como se vê, pela simples comparação de traduções e versões fica difícil chegar a um consenso. É difícil até mesmo concluir se se trata de uma afirmação (“o espírito tem ciúmes”) ou uma pergunta (“o espírito tem ciúmes?”).
A palavra ciúme
Qual é o significado real do termo traduzido como ciúme? Ele deve ser tomado num sentido bom ou mau? No grego secular o termo phtoneo significa inveja “que faz com que alguém tenha ressentimento contra outra pessoa por ter algo que ele mesmo deseja, sem porém, possuí-lo” (DITNT). Embora pareça ser sinônimo de zelos, “ciúme”, os escritores clássicos distinguem um do outro. Enquanto zelos é “o desejo de ter aquilo que outro homem possui, sem necessariamente ter ressentimento contra aquele que o possui”, pthonos “se ocupa mais em privar o outro da coisa desejada do que em obtê-la”.
No Novo Testamento, a forma verbal ocorre apenas uma vez, enquanto que o substantivo aparece nove vezes. Em Gl 5:26 “invejando-nos uns aos outros” contrasta com “viver no Espírito” (Gl 5:25). Nas epístolas aparece em várias listas de qualidades más. Em Gl 5:21 é uma “obra da carne”, em Rm 1:29 é uma característica daqueles a quem Deus entregou a um “sentimento perverso”, e em Tt 3:3 dos inconversos. Em 1Pe 2:1 é algo que os crentes devem deixar para trás, 1Tm 6:4 diz que nasce de questões e contendas de palavras motivadas pela soberba. Os evangelhos (Mt 27:18; Mc 15:10) nos informam usando esse termo que foi por inveja que os líderes religiosos entregaram Jesus a Pôncio Pilatos. Em Fl 1:15 o termo é contrastado com “boa vontade”.
O que se pode concluir do uso bíblico de phthonos é que refere-se a um “sentimento de desgosto produzido por testemunhar ou ouvir falar da vantagem ou prosperidade de alguém” (Vine). E devido a esse sentido sempre negativo, jamais é utilizado em referência a Deus ou ao Espírito Santo, e se em Tg 4:5 o sujeito é Deus ou o Espírito Santo, trata-se de uma excepcionalidade e tanto.
O texto citado por Tiago
É impossível identificar com certeza qual passagem Tiago tinha em mente. Alguns acreditam que que ele não se referia a nenhuma passagem específica, mas fazia um resumo do ensino do Antigo Testamento. Porém a fórmula de introdução que usa, “a escritura diz” parece requerer uma citação direta. Vejamos algumas das possíveis passagens, sem pretender esgotar as alternativas.
Algumas passagens dizem que Deus é zeloso. Êxodo 20:5 diz que “eu, o SENHOR teu Deus, sou Deus zeloso” e noutra parte “o nome do SENHOR é Zeloso; é um Deus zeloso” (Ex 34:14). Esse zelo divino é primeiramente voltado para a Sua glória, mas também por aqueles que lhe pertencem: “Zelei por Sião com grande zelo, e com grande indignação zelei por ela” (Zc 8:2). Esse zelo faz de Deus um fogo consumidor “o SENHOR teu Deus é um fogo que consome, um Deus zeloso” (Dt 4:24). Porém uma informação deve ser dada aqui. O termo hebraico usado nessas passagens, e em outras correlatas, quando citadas no Novo Testamento ou traduzidas na Septuaginta, é sempre zelos e nunca phthonos.
Uma passagem contraposta a essas é Gn 4:7: “Se bem fizeres, não é certo que serás aceito? E se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e sobre ti será o seu desejo, mas sobre ele deves dominar”. O que dizem que essa é a passagem que Tiago tinha em mente advogam que ciúme não tem a ver com o zelo divino, e sim com desejos pecaminosos dos homens. Nesse caso, espírito é usado em contraposição ao Espírito Santo. “Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; e o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não fazem o que desejam” (Gl 5:17). Outras passagens poderiam ser sugeridas (Gn 6:3; Is 63:8–16; Ez 36:17; Zc 1:14; 8:2-3), mas infelizmente não ajudam a elucidar a questão.
O sujeito da oração
Tendo levantado as questões anteriores, podemos nos voltar para a discussão da identidade do espírito. Faremos isso considerando quem é o sujeito na oração. As possibilidades são Deus, o Espírito Santo, o espírito do homem e o espírito maligno.
Até onde pude constar a única tradução que se aproxima (a conclusão é questão de interpretação) de um espírito maligno aqui é o Novo Testamento Judaico: “Ou vocês supõem que a Escritura fala em vão ao dizer que há um espírito em nós que deseja intensamente?”. Yiechiel Lichstenstein, citado no Comentário Judaico do Novo Testamento, diz “Em minha opinião, o espírito aqui se refere não a Deus, mas a Satanás”. Ele busca apoio no verso 7, que diz “resisti ao Diabo e ele fugirá de vós” e recorre a Gn 4:7 afirmando que “o espírito maligno é o impulso maligno em nós”, apoiando essa interpretação de Gênesis no Tamulde (Bava Batra 16a): “Ele é Satanás, o impulso maligno”.
Algumas traduções colocam Deus como sujeito e o Espírito (Santo ou humano) como o objeto do ciúme. Um exemplo é a Bíblia de Jerusalém: “Ele reclama com ciúme o espírito que pôs dentro de nós?”, seguida pela Fácil de Ler: “Deus quer que o espírito que colocou em nós viva somente para Ele”. Uma vez aceita essa tradução, resta saber a identidade do Espírito. Algumas versões trazem a expressão “que ele fez habitar em nós” (vamos passar ao largo da discussão sobre os manuscritos usados nas traduções). É uma expressão comum para se referir ao Espírito Santo e inédita em referência ao espírito humano. Nesse caso, é mais provável que espírito seja uma referência ao Espírito Santo.
Parece-me que a maioria das traduções colocam o Espírito Santo como sujeito. A Almeida Revista e Atualizada representam bem esse grupo de traduções e versões: “É com ciúme que por nós anseia o Espírito, que ele fez habitar em nós”. Porém, nem todas afirmam positivamente que o Espírito tem ciúmes, mas colocam a questão na forma interrogativa, que alguns entendem ser uma pergunta retórica, que pede um não como resposta, como sugere a nota da Almeida Revista e Corrigida Anotada: “Porventura o espirito que em nós habita, cobiça para inveja?”.
Finalmente, há a possibilidade de que espírito se refira ao espírito humano. A NTLH parece indicar isso: “O espírito que Deus pôs em nós está cheio de desejos violentos”. Apesar de grafar Espírito, com maiúscula, a Almeida Revista e Atualizada, também pode ser entendida assim. “O Espírito que em nós habita tem ciúmes”. E se “que fez habitar em nós” for admitido como possível para o espírito humano, outras traduções podem ser consideradas como apresentando o espírito humano como aquele que tem ciúmes.
Minha posição
Pela complexidade da passagem, qualquer posição deve ser considerada provisória e sujeita a revisão. Portanto, não pretendo ser dogmático. Mas considerando que ciúme/inveja é tomado sempre num mau sentido na Bíblia e jamais utilizado tendo Deus ou o Espírito Santo como sujeitos, acho muito improvável que a divindade seja representada como tendo ciúmes (lembrando que zelo é uma tradução sui generis aqui). Além disso, o verso seguinte estabelece um contraste, dizendo “Antes, dá maior graça” (Tg 4:6). Portanto, creio que como em todo o Novo Testamento, aqui também ciúme tenha uma conotação má, incompatível com o caráter de Deus. Portanto, vejo duas possibilidades: ou a sentença é interrogativa e retórica (“o Espírito tem ciúme? Não”) ou o espírito referido é o humano, tomado de paixões carnais. Das duas, fico com a primeira, mas considero a segunda também consistente com o contexto e com o restante da Bíblia.
Soli Deo Gloria
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