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quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O caso de Atos 13:48
Clóvis Gonçalves

"Os gentios, ouvindo isto, regozijavam-se e glorificavam a palavra do Senhor, e creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna."

O versículo acima representa uma dificuldade para os que negam a predestinação para a vida eterna. Pois a leitura simples do texto dá a entender que alguns creram e o fizeram porque anteriormente haviam sido destinados para a vida eterna. Diante dessa dificuldade, alguns dizem que "haviam sido destinados" é uma tradução ruim, e que o texto é melhor traduzido "estavam dispostos". Ou seja, ao invés de crerem por terem sido destinados para a vida eterna, eles creram porque estavam mental ou emocionalmente dispostos a isso. Analisaremos a seguir se esta interpretação se sustenta à luz dos seguintes argumentos:

1. A expressão nas principais traduções e versões

As principais traduções e versões em português trazem "creram todos os que haviam sido destinados para a vida eterna", caso da Revista e Atualizada e da Tradução Brasileira. As Revista e Corrigida, Edição Contemporânea e Almeida Corrigida Fiel traduzem "creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna". A Nova Versão Internacional apresenta "creram todos os que haviam sido designados para a vida eterna" e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje "creram todos os que tinham sido escolhidos para ter a vida eterna". A tradução em português "O Livro", da International Biblical Society diz que "creram todos os que Deus destinou para a vida eterna". A Edição Pastoral, da Paulus, traz "todos os que estavam destinados à vida eterna abraçaram a fé". Outra tradução católica, publicada pela Editora Vozes, traz "aceitando a fé todos que estavam destinados à vida eterna". Ainda outra Bíblia católica apresenta "creram todos quantos haviam sido destinados para a vida eterna".

De igual modo, as principais traduções em inglês usam palavras como "ordained", "appointed" , "destined" e "pre-destined". Nas Bíblias em espanhol o versículo é traduzido utilizando expressões cognatas às do português, como "ordenados" e "designados". As versões em italiano traduzem "ordinati" e "preordinati", sendo este último termo também utilizado na Nova Vulgata, a Bíblia oficial do Vaticano.


Se a absoluta maioria das traduções e versões bíblicas trazem palavras e expressões que indicam uma ação soberana de Deus na eternidade e sequer sugere que o versículo possa significar uma disposição prévia das pessoas em crer, por que fazer violência ao sentido natural do texto para adequá-lo a um sistema teológico ou modo de pensar? Será que os diversos tradutores da Bíblia para diversas línguas e as diversas comissões revisoras foram unânimes em errar usando uma palavra incorreta na passagem em questão? Acho essa hipótese muito pouco crível.


2. A palavra no original

O termo traduzido "ordenados" ou "destinados" é tetagmenoi, derivado de tasso. O Léxico de Strong define tasso como "colocar em ordem", "situar", "apontar", "designar". O termo ocorre em oito lugares no Novo Testamento e é traduzido como "designar" (Mt 28:16 RA), "sujeitar" (Lc 7:8 RA), "resolver" (At 15:2 RA), "ordenar" (At 22:10 RA), "marcar" (At 28:23 RA), "instituir" (Rm 13:1) e "dedicar" (1Co 16:15). Nada que se aproxime de "dispor-se a".


F. F. Bruce, no Novo Comentário da Bíblia, informa que o termo pode ter o sentido de "inscritos" e "arrolados", indicando para confrontação Ap 13:8 e 17:8. Os judeus usam a expressão "ordenados para a vida eterna" e "inscritos para a vida eterna" apenas como significando "predestinação ou eleição para a vida eterna" como um ato de Deus realizado na eternidade. O Jamieson, Fausset and Brown Commentary diz que sem fazer violência a ele, o texto não pode ser interpretado diferentemente de que "a divina ordenação para a vida eterna é a causa e não o efeito da fé dos homens".


3. O modo verbal

Vamos analisar a voz e o modo verbal das palavras crer e destinar. Crer está na voz ativa e no modo indicativo. A voz ativa representa o sujeito como o agente ou executor da ação e o modo indicativo é simples declaração de um fato, ou seja, indica que algo ocorre, ocorreu ou ocorrerá. Disso se conclui que as pessoas de fato creram naquele momento.
Destinados está no tempo perfeito, o que significa uma ação que é vista como tendo sido completada no passado, uma vez por todas, não necessitando ser repetida. A voz é passiva, ou seja, o sujeito da oração, recebe a ação ao invés de executá-la. Quer dizer, os que creram naquela ocasião haviam sido destinados para a vida eterna numa ocasião anterior .

Mesmo que se admita aqui que "destinados" pode ser traduzido como dispostos, ou seja, que as pessoas creram porque estavam dispostas a crer, não se resolve o problema dos arminianos, pois a voz passiva indica que, se fosse o caso, elas não estariam dispostas por si mesmas, mas foram feitas dispostas por outro sujeito.


4. O contexto

A declaração de Lucas faz parte de seu relato do acontecido em Antioquia da Pisídia. Paulo fala na sinagoga a judeus e prosélitos, discorrendo a história sagrada até chegar na remissão dos pecados e na justificação pela fé. Alguns deles creram e Paulo os exortou à perseverança na graça. No sábado seguinte, convidado que fora, Paulo novamente expõe a doutrina de Cristo, assistido agora, além dos judeus e prosélitos, por "quase toda a cidade" (At 13:44), o que causou inveja nos judeus. Então, Paulo se volta dos judeus aos gentios, que se alegram com isso. Dentre esses, muitos creram, a Lucas diz que foram "todos os que haviam sido destinados para a vida eterna" (At 13:48). Quem seriam esses "todos"? Creio que se refira àqueles dentre os "judeus e prosélitos" (At 13:43) e "gentios" (At 13:48) que creram, nos dois sábados.


É interessante notar que Lucas menciona casualmente a predestinação para a vida, no contexto do resumo da pregação de Paulo e do relato das conversões. Se por um lado não se possa dizer que Lucas pretendia ensinar predestinação aqui, por outro fica claro que a doutrina da eleição precedente à fé era algo comum aos crentes naqueles dias. Aquilo que hoje causa mal estar, era algo tido como normal para os crentes da igreja primitiva: Deus predetermina. A respeito da morte de Jesus, é dito que Ele foi "entregue pelo determinado designio e presciência de Deus" (At 2:23) e em oração reconheciam que aquilo que os homens ímpios fizeram a Jesus foi "o que a tua mão e o teu propósito determinaram" (At 4:28). Somente depois de "cumprirem tudo o que a respeito dEle estava escrito" (At 13:29) o tiraram da cruz. Ou seja, é com naturalidade que Lucas fala de ordenação para a vida eterna, visto que para ele Deus é "o Senhor, que faz conhecida essas coisas desde séculos" (At 15:8).

5. O testemunho geral das Escrituras

As Escrituras dão testemunho de uma escolha feita por Deus na eternidade e de uma chamada realizada na história. Por exemplo, Paulo diz aos tessalonicenses que "Deus vos escolheu desde o princípio para a salvação" e que "também vos chamou mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor Jesus Cristo" (1Ts 2:13-14). Consoante modo, escreve aos Romanos "Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou... E aos que predestinou, a esses também chamou" (Rm 8:29-30). Aos efésios ele disse que Deus "nos escolheu nele antes da fundação do mundo... em amor nos predestinou para ele" e completa que "depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o Santo Espírito da promessa". (Ef 1:4-5, 9).

O reconhecimento da eleição se dá pelo atendimento convicto à chamada do evangelho (1Ts 1:4-5), pois o Deus "que nos salvou e nos chamou com santa vocação" o fez "conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos" (2Tm 1:9). Por crer que os que alcançam a salvação são os que antes foram eleitos e destinados à vida eterna é que o apóstolo dizia "tudo suporto por causa dos eleitos, para que também eles obtenham a salvação que está em Cristo Jesus, com eterna glória" (2Tm 2:10).
Pedro se dirige aos "eleitos segundo a presciência de Deus", a quem Deus "regenerou para uma viva esperança" (1Pe 1:2-3).

Eleição e chamada estão juntas também na segunda carta, onde ele recomenda "procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vocação e eleição; porquanto, procedendo assim, não tropeçareis em tempo algum" (2Pe 1:10).
Jesus falou a respeito da razão porque uns crêem e outros não crêem dizendo uns são "minhas ovelhas" e outros "não sois das minhas ovelhas", respectivamente. (Jo 10:26-27).

Conclusão


Creio que ficou demonstrado a fragilidade da afirmação de que o relato de Atos 13:48 fala de pessoas dispostas a crer. As principais traduções bíblicas, evangélicas e católicas, trazem destinados, apontados, ordenados à vida eterna, e não dispostos no sentido de inclinados a crer. O mesmo ocorre com as principais versões em línguas estrangeiras. O estudo do termo original, com auxílio de léxicos e verificação de outras ocorrências do termo no Novo Testamento também aponta para um ato de Deus e não uma atitude mental humana.

E mesmo que se admitisse, por um instante, que dispostos é uma tradução possível, o modo, a voz e o tempo verbal indicam que esse tornar disposto não é um ato da própria pessoa que creu. Se foram dispostas a crer, o foram por Deus e não de si mesmos. Além disso, a analogia da fé não deixa dúvidas que existe uma relação de causalidade entre ser eleito e crer, ou seja, crêem na história os que foram eleitos na eternidade.


Em vista do que foi exposto, as tentativas de amenizar a verdade expressa pela declaração lucana devem ser rejeitadas como mais um caso de eisegese, ou seja, fazer com que o texto signifique o que queremos que signifique, ao invés de aceitar o sentido natural do mesmo, claramente expresso, de que pessoas anteriormente destinadas à vida eterna, vieram a crer em momento oportuno.

Soli Deo Gloria

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